Educação Sentimental
TODOS: olá, bruno!
EU: bem, resolvi me juntar a este grupo porque eu preciso assumir para mim mesmo que sou mal educado sentimentalmente.
desde muito pequeno, sentir sempre foi algo inconstante para mim. nunca tive muitos amigos ao meu redor durante a minha infância, então criei meus próprios mundos de diversão e de passatempo. era como se eu me bastasse, e qualquer outra alma brincante ao meu lado fosse
desnecessária. esse deve ser o motivo de eu me ter em tão alto conceito.
a escola era um capítulo à parte: sempre isolado, era o último na escolha dos times, mas o primeiro na leitura das notas. talvez ter a nota mais alta fosse um agrado que eu devia a mim mesmo: quando eu a conseguia, eu me fazia feliz. pensando por essa perspectiva, posso parecer portador de dupla identidade: duas pessoas, uma tentando fazer a outra feliz. nunca pensei por esse ângulo. será que sou doente?
não importa. eu vivia bem, pensava eu, nesse mundo, com vários mim mesmos. eu fazia listas, organizava nomes, classificava coisas. por várias vezes, fiz competições esportivas com mais de 50 participantes, todos revestidos de mim mesmo. eu tinha amigos; eles que não tinham a mim. no meio dos participantes, sempre punha algum de quem eu não gostava: o colega fortão que arrumava briga, a guria por quem eu estava pseudoapaixonado e que me fazia sofrer - voltemos a ela depois -, o capitão do time que me deixou na reserva. era engraçado me ver encarnando-os, pois era uma encorpamento a contragosto. eu inclusive os fazia errar o saque - na época, se a bola pegava na rede, desenhada na parede do lado de fora de casa, o saque era anulado.
de qualquer forma, era meu mundo, e eu achava o máximo ser tão popular: as pessoas, inconscientemente, claro, usavam meu corpo, em troca da minha amizade. e eu tinha paixões! na verdade, eu tinha o que os livros diziam ser paixões, afinal todos deveriam amar. mas eu sempre fui metidão: já saía logo querendo a guria mais bonita da turma. e, convenhamos, além de ser alegadamente cdf e socialmente estranho, eu era bem gordo. bem. mas acho que tudo tinha uma explicação: eu sabia internamente que não a teria, sob hipótese alguma. que mal teria em querê-la?
e um dia ela resolveu ficar comigo, sob pressão pesada da classe toda, que queria ver o circo pegar fogo: apenas mais umas estimulações risíveis. então eu tinha 14 anos, na festa de confraternização da oitava série, no final do ano, despendindo-nos da escola de ensino fundamental apenas. não seríamos mais colegas, não nos veríamos mais, precisávamos - precisavam, retificando - rir. era meu primeiro beijo, e a boca dela era a que eu tinha querido desde a quinta série. que dia!
eu costumava chamar a isso de amor. querer e não ter. a afirmação que se tornava causa natural da negação. mas nesse dia eu a teria. então, o guri mais popular da escola me disse, em tom militar: bruno, entra naquela sala, que ela logo vai lá. e eu fui - nunca me importei com o recebimento de ordens, nem com seu mandante. lembro-me de que sentei em cima de uma carteira, ansioso, talvez ansioso como nunca mais estivera em minha vida. meu coração não batia; ele fazia uma rave dentro da sua cavidade torácica. então, ela entrou.
estava de roxo, toda de roxo, inclusive, em um conjunto de calça-casaco moletom da minie. oitava série: ainda eram permitidos os conjuntinhos. quando ela começou a caminhar em minha direção, me dei conta de que eu não sabia beijar. no alto da minha solidão infantil, eu havia apenas treinado com laranjas e com o travesseiro, mas eles não haviam esboçado nenhum sentimento. ela me olhava com um ar que eu não sei até hoje definir, mas era algo entre a
lascívia pueril e a pena profunda, afinal, ela sabia do meu caso de amor platônico. então, postou-se na minha frente, em pé, enquanto eu sentava gordamente em cima da carteira. olhamo-nos: ela, vagamente, e eu, sedentamente. era o grande momento. amor!
os dentes se bateram algumas vezes. eu achei natural, visto que a falta de destreza gera a ignorância benéfica. para ela, certamente não era natural, pois já tinha suas peripécias amorosas aos montes. o próximo grande momento desastroso: o que fazer após o beijo? acabou, voltamos a nos olhar, sem dizer nada. peguei na mão dela e levantei - sim, ainda estava sentado -, e ela começou a caminhar. lembro-me de que tive que acelerar meu passo para que nossas mãos
continuassem entrelaçadas. antes de sair daquela sala, ela disse: bruno, eu saio agora e tu esperas mais um pouco. todos estão no lado de fora esperando, e não quero sair junto.
minha grande experiência amorosa e minha grande experiência dolorosa. quando saí, todos já tinham ido embora, cansados, provavelmente porque fiquei lá dentro mais de uma hora. no outro dia, fiquei sabendo que a primeira frase dela, depois de sair da sala, em meio aos 'e aí' e 'conta como foi', fez graça entre todos: ah, pessoal... vocês sabem que foi um favor!
nunca agradeci a ela o favor. talvez tenha sido grosseiro de minha parte, mas culpemos a minha falta de educação sentimental.
e cresci assim, com essa imagem de favor na minha cabeça. houve outras, obviamente, depois; uma, cheguei a namorar dez meses, lá pelos meus 17 anos. com ela pelo menos eu sabia como me portar: o primeiro beijo não foi em cima de uma carteira, e não peguei na mão dela depois: ela pegou. senti-me, lembro-me claramente, mais tranquilo por ter tido a mão pega: uma segurança estranha de quem já fora escaldado. mas acabou por eu não ter educação: ela gostava demais
de mim, e eu não sabia deixar alguém ser tão absolutamente louco por mim.
a minha falta de educação me levou longe. saindo da adolescência, comecei a entender que as baladas eram lugares de livre-atiração. mas não sou e nunca fui o tipo que 'chega'. aos 21 anos, num desses lugares de temporada eterna de caça, uma doce alma me olhou durante um tempo na noite. nessa época, eu estava mais apresentável e tinha um conhecimento de mundo um pouco maior sobre essas questões sentimentais, embora ainda não tivesse sido educado sobre o tema. então, ela me olhava, com um olhar que lembrava de longe o ar de luxúria da minha benfeitora, aos 14 anos. eu não entendia, ou entendia e achava impossível, ou não entendia mesmo. e ela dançava e olhava estritamente através de mim. quando ela tomou coragem e me disse um singelo 'oi', eu pedi desculpas e disse que não sabia que horas eram. virei-me, enrubecido, e fui embora.
as coisas melhoraram bastante depois de alguns amigos me dizerem que provavelmente ela estava querendo algo comigo. mesmo assim, não achava inteiro usar esses lugares como primeiras abordagens amorosas: a música era muito pesada, e nos filmes a trilha sonora do beijo é sempre de um cantor meloso, com um hit só. além disso, o casal sempre se conhecia antes, sabiam nomes, sobrenomes e profissão. quando comecei a pensar que minha educação deveria ser dada pelos filmes, novamente quebrei a cara. as pessoas são mais diretas que os personagens de closer. quando perguntei pela primeira vez o sobrenome da vítima, ela me olhou atônita e beijou outro cara, no meu lado.
eu queria um reformatório para mal educados. os pais sempre ameaçam seus filhos com colégios internos, viagens e casa da vó, mas nunca ameaçam com reformatórios sentimentais. eu teria sido um candidato aprumado. notei isso quando resolvi namorar de novo: aos 22, dessa vez, por apenas 3 meses; aos 22, ainda, por outros três meses; e aos 23, fazendo um revival dos 22, a mesma, por mais 3 meses. parece que eu estava começando a entender que amor era volátil, numa expansão temporal de, obviamente, três meses.
aos 23, por fim, começou minha maior prova, errônea, depois eu perceberia, de que eu estava finalmente educado! tanto estava certo de que eu havia-me graduado em educação sentimental que resolvi ingressar num namoro a distância! 697 ou 693 quilômetros a distância! prendado, cdf, primeiro da classe na disciplina! namoro a distância é só para quem tira primeiro lugar em educação sentimental.
então, passei dois anos e alguns vários meses com a ideia fixa de que eu era o suprassumo do assunto. além de ter aprendido toda a teoria, eu dava aulas, diárias, de como viver ducadamente. era um daqueles amores incondicionais, atemporais, intraíveis e provativos. um curso extensivo de prática sentimental. literalmente, nele eu testei todos os teoremas e fórmulas que eu conhecia.
após mudanças drásticas em termos habitacionais e sociais, a pseudoeducação me mandou ir atrás desse amor, e fui. finalmente, eu me sentia tranquilo, sem muitas novas teorias a serem aprendidas, desfrutando o que todos aqueles anos me tinham ensinado. mas nunca se aprende tudo nesse tópico. meu erro estava aí: achar que estava educado, achar que tinha sido o primeiro da classe, ou melhor, achar que tinha sido o único da classe. perdi o primeiro lugar em questões muito pragmáticas e, principalmente, demasiadamente velozes.
depois desse outro grande monumento à falta de educação, tive mais algumas intervenções acadêmicas, mas também não soube ter boas maneiras. tentei colar nas provas finais, mas o conteúdo das avaliações havia mudado no último momento. pelo menos isto eu aprendi: as provas de educação sentimental são sempre diferentes de um período para outro.
e é por isso que estou aqui, neste grupo de apoio aos mal educados. não sei mais a quem recorrer. a cada nova oportunidade sentimental, sinto o peso das reprovações nas minhas costas, como um aluno que aprendeu absolutamente todas as educações formais que a ele foram expostas, mas continua falhando, indeterminadamente, em todas as situações em que a vida lhe exige novos conhecimentos sentimentais. a recorrência do erro parece ter-me privado do elemento novo, e estou à beira de fazer uma transferência de responsabilidade ao mundo, por ele não ter me ensinado o básico nesse campo.
sinto vontade de processar alguém pela incompetência acadêmica que vi passar pelos meus olhos durante minha vida, mas acabo sempre retornando ao ponto em que me vejo no centro, não tendo sido aplicado o suficiente. sei que partilhar essas experiências com vocês poderá me dar novas perspectivas de ação, e por isso estou tão ansioso por ouvi-los relatar como vocês superaram a falta de educação.
obrigado pela atenção.
TODOS: bem-vindo, bruno. [palmas].